Na manhã de 6 de outubro de 2024, enquanto os paulistanos escolhiam seu próximo prefeito nas ruas, dentro das celas e corredores de presídios e unidades socioeducativas do estado, Guilherme Boulos já tinha vencido — não no total, mas no coração de um eleitorado invisível. Nas 51 seções eleitorais montadas em cadeias e Fundação Casa, ele conquistou 48,55% dos votos válidos, com 234 votos entre 2.700 detentos e jovens apreendidos aptos a votar. Enquanto isso, nas ruas, a corrida era outra. Mas o que aconteceu dentro das grades revela algo mais profundo: uma desconexão entre o que os presos querem e o que a cidade elegerá.
Os votos que ninguém esperava
O Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP) divulgou resultados que desafiaram expectativas. No Centro de Detenção Provisória 4 de Pinheiros, zona oeste da capital, Boulos teve votação unânime: 110 votos, de 194 eleitores habilitados. Nada mais, nada menos. Ninguém mais apareceu. Em outras unidades, como a Fundação Casa Chiquinha Gonzaga, ele empatou com o atual prefeito Ricardo Nunes — 5 votos cada. Mas o mais curioso foi o Presídio Romão Gomes, na zona norte, onde policiais condenados são encarcerados. Ali, Nunes levou 25 votos, Pablo Marçal (PRTB) 32 — e Boulos, apenas dois. Um contraste gritante. Era como se, dentro das mesmas paredes, existissem duas cidades.Por que os presos votam diferente?
A explicação não está só na ideologia. Está na realidade. Muitos detentos veem Boulos como o único candidato que fala de reforma do sistema prisional, direitos humanos e reintegração. Ele já foi líder do movimento dos sem-teto e tem histórico de visitas a presídios. Já Nunes, como gestor do poder executivo, representa o que existe — o sistema que mantém as cadeias superlotadas, os atrasos nos processos e a falta de programas educacionais. Mas nos presídios de segurança máxima, onde a maioria dos detentos é composta por agentes da lei condenados, a lealdade é outra. Eles veem Nunes como o governante que garante a ordem — e talvez, por isso, o apoiam. Tabata Amaral (PSB), com 72 votos no primeiro turno, e Pablo Marçal (PRTB), com 124, tiveram desempenho discreto. Marçal, que se destacou nas redes sociais com discurso populista e anti-establishment, teve mais força entre os presos do que entre o eleitorado geral — mas ainda assim, não foi suficiente para desafiar Boulos nas unidades mais populosas.O segundo turno: o que mudou?
No dia 27 de outubro de 2024, quando o segundo turno das Eleições Municipais de São Paulo ocorreu, o resultado geral foi claro: Nunes venceu com 59,35% dos votos válidos, totalizando 3.393.110 votos. Boulos, com 40,65% (2.323.901), não conseguiu superar a vantagem do atual prefeito. Mas nas unidades prisionais, a história foi outra. Boulos obteve 72% dos votos válidos — 194 votos contra 54 de Nunes. A exceção? O Presídio Romão Gomes. Lá, Nunes ganhou por 32 a 3. Um sinal de que, mesmo entre os que mais sofrem com o sistema, nem todos o veem como inimigo.
Quem pode votar — e quem não votou
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) garante o direito de voto a presos provisórios, conforme a Constituição. Mas nem todos votam. Dos 2.700 aptos no primeiro turno, 84 não escolheram candidato: 46 detentos e 38 jovens se abstiveram, e outros 84 votaram em branco ou nulo — alguns até em partidos sem candidato à prefeitura, como o 13 (PT) e o 22 (PL). Isso mostra algo crucial: muitos não se veem representados por nenhum dos nomes. A votação não é um ato de escolha, mas de resistência — ou de desesperança.Um debate que não aconteceu
"É uma pena, porque a maior cidade do país precisava dar o exemplo na política", disse o analista político citado pelo R7 News. "Mas a gente tem, vamos dizer assim, essa virada de uma população que está olhando muito para redes sociais. Isso acaba facilitando comportamentos muito populistas." Ele completou: "Os debates foram muito superficiais. Uma eleição precisa debater a cidade — que tipo de cidade queremos, como deve ser o seu futuro — e, infelizmente, isso não aconteceu." E é aí que mora o paradoxo. Enquanto os presos, que vivem nas garras do sistema, escolhem o candidato que propõe mudá-lo, a cidade que os mantém encarcerados escolhe o candidato que garante a continuidade. Boulos venceu nos presídios porque falou de justiça. Nunes venceu na cidade porque prometeu ordem. Mas ninguém falou — de verdade — sobre como transformar essa contradição.
Quais são os próximos passos?
O governo do estado, liderado por Tarcísio de Freitas, administra o sistema prisional onde esses votos foram contados. Nenhuma das candidaturas propôs um plano concreto para reduzir a superlotação, aumentar a educação prisional ou garantir acesso à justiça. Agora, com Nunes reeleito, a pressão será para que ele cumpra promessas de segurança — mas será que ele ouvirá os que votaram nele dentro das celas? E será que Boulos, mesmo derrotado, conseguirá transformar esse voto de resistência em uma agenda política?Frequently Asked Questions
Por que Boulos teve mais votos nos presídios do que na cidade?
Boulos é visto como o único candidato com histórico de atuação concreta em direitos humanos e reforma prisional. Ele visitou presídios, defendeu a redução da superlotação e propôs programas de educação e trabalho para detentos. Já Nunes, como gestor do atual sistema, representa a continuidade — algo que muitos presos não querem. Nos presídios, o voto é um ato de esperança, não de pragmatismo.
Quem pode votar nos presídios de São Paulo?
Apenas presos provisórios — ou seja, aqueles que ainda não tiveram a sentença transitada em julgado — têm direito ao voto, conforme a Constituição. Detentos condenados em regime fechado perdem os direitos políticos. A votação é facultativa, e muitos não participam por falta de informação, desconfiança ou desesperança. No primeiro turno, 84 eleitores se abstiveram ou votaram em branco/nulo.
Por que o Presídio Romão Gomes votou diferente?
O Presídio Romão Gomes abriga policiais condenados, muitos por crimes relacionados ao exercício da função. Eles tendem a ver Nunes como o candidato que garante a ordem e o apoio institucional — e Boulos como um crítico do sistema policial. A votação ali reflete lealdades profissionais, não ideológicas. Nunes teve 32 votos contra apenas 3 de Boulos no segundo turno, mostrando que o contexto do presídio molda o voto.
O que os resultados prisionais revelam sobre a democracia em São Paulo?
Revelam uma democracia fragmentada. Enquanto a maioria da população elegerá o candidato que promete segurança, os mais vulneráveis — os presos — escolhem o que promete justiça. Isso mostra que o sistema penal não é um reflexo da sociedade, mas um abismo. A cidade que vota em Nunes não vê o que os presos vivem. E os presos, por sua vez, não se sentem representados por ninguém — exceto por Boulos, mesmo que ele não vença.
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