
Ouro inédito nos 20 km e domínio em Tóquio
No quilômetro 3, a aliança caiu no asfalto. Duas horas depois, o Brasil tinha um campeão mundial. Caio Bonfim venceu os 20 km da marcha atlética no Mundial de Atletismo em Tóquio, na madrugada deste sábado (20), horário de Brasília, e entrou para a história com 1h18min35s. O chinês Zhaozhao Wang levou a prata com 1h18min43s, e o espanhol Paul McGrath fechou o pódio com 1h18min45s.
O brasileiro controlou a prova do início ao fim. Sem afobação, manteve contato com a ponta, administrou as mudanças de ritmo e guardou energia para a parte mais dura do circuito, onde o calor úmido de Tóquio costuma cobrar caro. A decisão saiu nos quilômetros finais, quando Caio respondeu às últimas investidas dos rivais e abriu uma margem que, curta no relógio, foi enorme na sensação de controle.
As condições da capital japonesa exigiram precisão: circuito plano, muitas curvas e umidade alta. Nesses dias, cada hidratação vira ativo estratégico, e qualquer erro de técnica pode custar tempo no pit lane. Caio passou ileso pelos momentos de maior pressão dos juízes, manteve a mecânica limpa e transformou consistência em velocidade. O resultado final espelha isso: tempos muito próximos entre os três primeiros, mas com o brasileiro sempre um passo à frente.
A vitória leva o país a um feito sem precedentes: é o primeiro ouro do Brasil na marcha atlética em um Mundial. E consolida um ciclo raro de regularidade. Em Tóquio, uma semana antes, Caio já havia subido ao pódio nos 35 km com a prata, mostrando amplitude de desempenho em distâncias que exigem estratégias diferentes – numa, explosão controlada; noutra, resistência absoluta.
Com o ouro nos 20 km, ele soma quatro medalhas em oito edições disputadas do Mundial e se isola como o atleta brasileiro mais premiado na história da competição. No currículo, entram os bronzes de Londres 2017 e Budapeste 2023 (ambos nos 20 km) e a prata em Tóquio (35 km), além da consagração de agora. É um arco de carreira que mistura paciência, reinvenção e um senso agudo de prova.
O pódio em Tóquio também redimensiona a rivalidade internacional da marcha. Chineses historicamente formam escolas fortes, espanhóis têm tradição consolidada, e o Brasil há tempos aparece nos principais blocos. Desta vez, o sprint final teve sotaque brasileiro.
Entre os demais brasileiros, a delegação saiu com resultados sólidos. Mateus Corrêa terminou em 17º, com 1h21min04s, em prova de ritmo estável, e Max Batista foi o 42º, com 1h27min34s, completando o percurso com foco em experiência. No feminino, Viviane Lyra cruzou em 12º, com 1h29min02s, em linha com o que vem mostrando na temporada. Gabriele Muniz foi a 32ª, com 1h34min28s. Já Érica Sena precisou abandonar no km 3, após sentir desconforto precoce que inviabilizou manter a técnica exigida no ritmo do pelotão.
Em Tóquio, o episódio da aliança virou nota de rodapé folclórica de um dia gigantesco. Caio contou que perdeu o anel por volta do km 3. Entre um posto de hidratação e outro, tentou avisar oficiais de prova e colegas que algo havia caído no traçado. Sem poder interromper a marcha, seguiu. No fim, riu: disse que a esposa, Juliana, só perdoaria a perda se ele voltasse com o ouro. Voltou. E prometeu tentar recuperar o anel no circuito com a ajuda da organização.
A dinâmica dos 20 km explica por que pequenas distrações podem custar caro. Diferente de uma corrida, a marcha pune qualquer desequilíbrio: o contato com o chão precisa ser contínuo, e a perna de apoio deve ficar estendida até a passagem do tronco. Acumular advertências leva ao pit lane, com parada obrigatória, e isso encerra qualquer pretensão de vitória. Em Tóquio, Caio equilibrou agressividade e técnica com rara maturidade.
- Top 3 – 20 km masculino: Caio Bonfim (BRA) – 1:18:35; Zhaozhao Wang (CHN) – 1:18:43; Paul McGrath (ESP) – 1:18:45.
- Brasileiros – 20 km masculino: Mateus Corrêa – 1:21:04 (17º); Max Batista – 1:27:34 (42º).
- Brasileiras – 20 km feminino: Viviane Lyra – 1:29:02 (12º); Gabriele Muniz – 1:34:28 (32º); Érica Sena – abandono no km 3.

Impacto histórico, legado e a melhor campanha do país
O ouro em Tóquio pesa além da medalha. A marcha atlética brasileira, por muitos anos restrita a nichos, aparece na vitrine principal do esporte mundial com um campeão global. Em um país acostumado a celebrar sprints e saltos, ver a marcha no topo ajuda a ampliar repertório, atrair investimentos e inspirar novos atletas – dos núcleos escolares às pistas municipais.
Essa medalha também reforça o desenho da melhor campanha do Brasil em um Mundial. O número de finalistas cresceu, novos nomes chegaram a decisões e houve pódios em modalidades distintas. É um retrato de base mais estruturada, intercâmbio técnico estável e planejamento de ciclo. No caso de Caio, chama atenção a capacidade de performar em dois fins de semana seguidos – prata nos 35 km e ouro nos 20 km –, mantendo frescor físico e mental.
O caminho até aqui não foi linear. O atleta conviveu com lesões, trocou cargas de treino e aprendeu a acertar o ponto de polimento para grandes campeonatos. Evoluiu taticamente, passou a escolher melhor quando responder a ataques e como se posicionar em pelotões que mudam de 4:00/km para 3:50/km em questão de metros. Em Tóquio, quando a prova “esticou”, ele esteve exatamente onde precisava.
Há também o fator simbólico. O Brasil já tinha nomes campeões em provas de pista e campo, mas faltava um ouro mundial na marcha. A conquista preenche essa lacuna e recoloca o país no mapa de uma especialidade em que a paciência vale tanto quanto a velocidade. E mostra que é possível formar talento de elite fora dos grandes centros, com equipes técnicas enxutas e método apurado.
O que vem pela frente? A agenda internacional da marcha segue com etapas do circuito mundial e competições por equipes. O foco, agora, é transformar a temporada de Tóquio em plataforma, não em ponto final. Ajustar o volume, preservar o corpo e manter a consistência que traz medalha atrás de medalha. O ouro dos 20 km é um marco; a constância é o que sustenta legados.
Na memória, ficam duas imagens do sábado japonês: o ataque preciso no trecho final, quando o relógio virou aliado, e o sorriso leve de quem perdeu uma aliança, mas ganhou um lugar definitivo na história do esporte brasileiro.
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